quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Decifra-me ou devoro-te: desenrolando o fio de Ariadne

“O que é que pela manhã tem válvulas, ao meio-dia tem transistor e à tarde possui circuito? Decifra-me ou devoro-te”. Esse é o desafio enfrentado por educadores na atualidade frente ao imperativo da inserção da tecnologia na prática pedagógica em sala: conhecer e utilizar as novas tecnologias informacionais e comunicacionais na construção do conhecimento nos seus espaços educacionais de forma consciente.

Tal tarefa – hercúlea por sinal – suscita algumas reflexões a que não podemos simplesmente nos eximir, sob pena de não correspondermos, a contento, ao grande desafio que é educar em tempos neoliberais e pós-moderno. Tempos de grandes paradoxos, que nos impelem, de forma cada vez mais intensa, a tomarmos uma posição frente a tais incongruências de nossa época.

Um desses paradoxos nos motivou a escrever este pequeno texto: a inserção da tecnologia nas salas de aula como instrumento e conteúdo de ensino. Antes de tudo é importante elucidarmos por que entendemos tal fato como um paradoxo.

Segundo o dicionário eletrônico Houaiss o conceito de paradoxo se refere a: 1. Uma proposição ou opinião diferente da comum; 2. Aparente falta de nexo ou de lógica. É ilustrativo da segunda assertiva o paradoxo de J. Sayad citado por Bianchetti (1997, p. 01): “[...] o paradoxo do pai que chama o filho, muito dócil e obediente, e ordena: ‘seja desobediente’. Como responder? Se obedecer, desobedece”. Nesta linha se encontra o paradoxo da inserção das novas tecnologias nas escolas nos tempos atuais.

A revolução da informática e os rearranjos do processo de produção ocasionaram mudanças no mundo produtivo, principalmente para os trabalhadores, demandando destes uma formação de outro tipo. Tal demanda, no entanto, se orienta em um duplo aspecto: uma formação mais específica, para um pequeno número de trabalhadores, e a universalização de uma educação geral básica, para o restante.

Tal paradoxo, no entanto, longe de ser recente, remonta o próprio surgimento da escola enquanto espaço privilegiado de (re)produção de uma “educação diferenciada”. Segundo Saviani (1994, p. 02), a escola (que em grego significa “lugar do ócio”), surge na Grécia Antiga com o intuito de ministrar um tipo de saber diferenciado orientado para a classe dominante, proprietária de terras e escravos e, por isso mesmo, possuidora de recursos e tempo para se dedicar a este tipo de educação, que se sobrepunha a educação dos demais que se dava no próprio mundo da produção.

Tal dicotomia se manteve na Idade Média, com a Igreja monopolizando o saber, e na Idade Moderna, com a separação entre trabalho intelectual e manual – uma educação técnica para o trabalhador e outra mais universal para a elite dirigente. Embora alguns teóricos clássicos da economia tenham considerado a importância da educação para os trabalhadores, como defendia Adam Smith, tal instrução, segundo ele, deveria ser dada “em doses homeopáticas” (SAVIANI, 1994, p. 09).

O conhecimento na sociedade capitalista é força produtiva, logo deve ser apropriada exclusivamente pela burguesia, que detém os meios de produção. Ao trabalhador cabe somente a posse de sua força de trabalho, para que possa “vendê-la livremente” ao dono do capital. Alijado de todos os meios para sua subsistência, tal “liberdade” carrega em si um paradoxo – o trabalhador é livre para vender sua força de trabalho, mas também é livre dos meios que poderiam torná-lo efetivamente livre – os meios de produção e, dentre eles, o conhecimento.

Assim, se hoje se apela para uma maior formação dos trabalhadores, sob pena de solapar o desenvolvimento do país, inviabilizando a concorrência no mercado internacional, tal apelo se perfaz ideológico à medida que:

[...] esta nova forma de organização e gestão do trabalho, se aparentemente amplia o conteúdo do trabalho ao substituir a linha pela célula de produção, onde um trabalhador cuida de várias máquinas, na verdade, cada vez mais esvazia sua atividade, reduz os requisitos de qualificação e intensifica o uso da força de trabalho, explorando-a ainda mais (KUENZER, 2005, p. 80).

Assim sendo, o discurso da qualificação, como exigência para inserção no mercado de trabalho, ou como pré-requisito para a “empregabilidade”, na verdade, é um discurso demagógico que deixa à margem desse processo uma grande maioria de trabalhadores, visto que o que está acontecendo efetivamente nas empresas é que, com uma parcela menor de trabalhadores e uma nova forma de organização da produção, se potencializa a exploração do trabalho, maximizando, pari passum, a extração de mais-valia. A flexibilização do trabalho, dessa forma, alimenta a maximização do lucro, onde um trabalhador agora pode assumir o controle das funções operativas de vários outros, sem, contudo, comprometer a produção.

As novas formas de organização e gestão da produção, atreladas ao revolucionar da base técnico-científica, com a substituição de capital vivo por capital morto promovem o desemprego em massa de trabalhadores, favorecendo, ao mesmo tempo, a exploração da força de trabalho, onde o exército de reserva agora serve como regulador e:

[...] deixa de ser considerado um fator de crise [...] para converter-se agora em um dos elementos do processo de controle das crises que aciona o mecanismo de desaquecimento da economia como forma de mantê-la ajustada às relações sociais vigentes, comandadas pelos interesses do sistema financeiro internacional (SAVIANI, 2005b, p. 21-22).

É dessa forma – no tocante a impossibilidade de realização daquilo a que se propõe –, que estão sendo pensadas as políticas de formação e qualificação na sociedade atual. O conceito de “sociedade do conhecimento”, como nova faceta da Teoria do Capital Humano (re-significada) e das concepções produtivistas de educação, são sua marca mais indelével.

A escola, que no seu fazer diário corresponde a esse panorama de exigências direcionadas a uma formação instrumental e tecnicista, contribui para “enfraquecer as perspectivas ético-políticas que afirmam a responsabilidade social e coletiva e a solidariedade e reforçar o ideário de uma ética individualista, privatista e consumista. O objetivo é produzir um cidadão mínimo, consumidor passivo que se sujeita a uma cidadania e a uma democracia mínimas, formais” (FRIGOTTO, 2005, p. 234).

Isto posto, as análises sobre a inserção de novas tecnologias na escola devem levar em conta todos estes fatores, não se resumindo ao que Bianchetti (1997, p. 07) classifica como posicionamentos antípodas, ou seja, há os apologetas – que “só vêem aspectos positivos nas novas tecnologias”, e os apocalípticos – que “só vêem aspectos demoníacos nas criações tecnológicas”.

Para além dessas posições dicotômicas e reducionistas, o que pretendemos é que os professores possam:

[...] se posicionar frente às novas tecnologias e apreender exatamente como elas são: criações humanas, carregadas de ideologias, capazes de contribuir para que os homens entrem no reino da liberdade ou de jogar os homens no despótico mundo descrito por George Orwel, no livro 1984, no qual o big brother, graças aos aparatos tecnológicos, torna-se onipresente, submetendo tudo e todos à sua ditadura (Idem, p. 08).

Sem esse posicionamento crítico, corremos o risco de implementarmos nas nossas escolas e nas nossa aulas, aquilo que Cysneiros (1999, p. 16) chama de inovação conservadora, que dá mais relevo aos meios, deixando de lado o conteúdo, o que corrobora para “a inatividade (física e mental) do aprendiz”. A inserção de novas tecnologias em sala de aula, por si só, não rompe com os tradicionalismos pedagógicos, como o “[...] fluxo unidirecional de informações, tipicamente um professor falando ou comentando imagens para alunas e alunos passivos” (Idem, p. 17); além do que “os alunos cansam-se facilmente após o efeito da novidade” (Idem, p. 18).

Na tentativa de desenrolar o “fio de Ariadne” – que na mitologia grega é a solução para a saída em segurança do labirinto do minotauro – e desobnubilar as relações intrínsecas entre educação e tecnologia na sociedade capitalista atual, trilhamos tal percurso. Cabe agora novos estudos neste sentido para tentarmos minimizar as lacunas deixadas por este artigo.

REFERÊNCIAS

- BIANCHETTI, Lucídio. Busca do fio de Ariadne: Dilemas do Professor Frente ao Avanço da Informática na Escola. Disponível em: Acesso em: 09 de setembro de 2009.

- CYSNEIROS, P. G. Novas tecnologias na sala de aula: melhoria do ensino ou inovação conservadora? Informática Educativa, UNIANDES - LIDIE, vol 12, No 1, 1999, p. 11-24.

- FRIGOTTO, Gaudêncio. Estruturas e sujeitos e os fundamentos da relação trabalho e educação. IN LOMBARDI, J.C., SAVIANI, D., SANFELICE, J.L. (orgs.) Capitalismo, trabalho e educação: debates contemporâneos 3. ed. - Campinas, SP: Autores Associados: Histedbr, 2005, p. 61-74.

- KUENZER. A. Z. Exclusão includente e inclusão excludente: a nova forma de dualidade estrutural que objetiva as novas relações entre educação e trabalho. In: LOMBARDI, J.C., SAVIANI, D., SANFELICE, J.L. (Orgs.) Capitalismo, trabalho e educação: debates contemporâneos 3. ed. Campinas, SP: Autores Associados: Histedbr, 2005, p. 77-95.

- SAVIANI, D. O trabalho como princípio educativo frente às novas tecnologias. In: FERRETI, C. et al (org). Novas tecnologias, trabalho e educação. Rio de Janeiro: Vozes, 1994.

- __________. Transformações do capitalismo, do mundo do trabalho e da educação. In: LOMBARDI, SAVIANI, SANFELICE (Orgs.) Capitalismo, trabalho e educação: debates contemporâneos 3. ed. Campinas, SP: Autores Associados: Histedbr, 2005, p. 13-24.

sábado, 19 de setembro de 2009

Tecnologia e Educação: uma relação possível?


O filme é Matrix (1999), de Andy e Larry Wachowski, e retoma uma problemática característica das relações entre homem e máquina na história - o conflito.
O cenário é aterrador: as máquinas inteligentes (AI) tomam o controle do mundo e, para sobreviver, começam a se utilizar da energia vital humana, pois sua fonte de energia fora inviabilizada depois que os homens detonaram seu arsenal atômico na tentativa de bloquear a matriz energética das máquinas - o Sol.
A partir de então as máquinas começam a "cultivar" os homens em cápsulas, para deles extrair energia - estes se transformam em baterias, em objetos que garantem a sobrevivência desse "Frankenstein" moderno.
Com todas as ressalvas necessárias, pois se trata de uma obra ficcional, que relações poderíamos construir entre o universo da ficção retratada no filme e o nosso universo atual, permeado por essas relações conflituosas entre homens/homens e homens/máquinas, ampliando essas discussões para a prática pedagógica dos professores em seus espaços educacionais? Afinal de contas a tecnologia ajuda ou prejudica o processo de ensino-aprendizagem efetivado em sala? Seriam as novas tecnologias informacionais e comunicacionais a panacéia para a solvência dos problemas enfrentados pela educação?
As respostas para estas e outras perguntas que possam surgir no decorrer deste debate devem servir como norte orientador e mediador das possíveis relações a serem travadas entre homem, tecnologia e educação no mundo atual.
Um bom começo seria explicar como entendemos cada elemento constitutivo da problemática que ora se apresenta: homem, tecnologia e educação; vislumbrando como estes interagem dialeticamente em cada etapa no processo de desenvolvimento histórico.
Para nós o homem é um sujeito social e histórico possuidor de uma dupla natureza (natural e social), que impelido pela necessidade de reprodução da sua existência material e objetiva, constrói, através do trabalho, relações com a natureza e com outros homens, dos quais depende para sua sobrevivência. Tais relações configuram-se de forma específica em cada etapa do processo de desenvolvimento produtivo; logo essas relações - que são históricas e por isso mesmo mutáveis - condicionam toda uma superestrutura política, ideológica e cultural, que, dialeticamente, também influem na forma dos arranjos produtivos dos homens em sociedade. Dessa forma, imerso nas relações sociais do qual faz parte, o homem desenvolve certos instrumentos e técnicas que, agindo sobre a matéria, potencializam e revolucionam o processo produtivo. Nesse sentido podemos entender a tecnologia como os "arranjos materiais e sociais que envolvem processos físicos e organizacionais, referidos ao conhecimento científico aplicável. [...] as tecnologias são produtos da ação humana, historicamente construídos, expressando relações sociais das quais dependem, mas que também são influenciadas por eles" (OLIVEIRA, 2001, p. 101).
Neste cenário a educação funciona como mecanismo de socialização de conhecimentos que permite aos homens não partirem infinitamente do ponto de partida do desenvolvimento produtivo, num processo cumalitivo de experiências e saberes necessários, com os quais nos distanciamos cada vez mais da nossa natureza natural - geneticamente determinada - e nos aproximamos de nossa natureza humana e/ou social. A educação, inserida no palco das relações produtivas, também é condiciona por essas mesmas relações, reproduzindo-as ou transformando-as, visto que, dialeticamente, também pode funcionar como mecanismo de ruptura com o status quo existente.
Dessa forma analisar as relações entre tecnologia e educação é, antes de tudo, analisar o contexto histórico em que emergem tais relações, fruto dos imperativos produtivos de cada época específica do desenvolvimento humano.
Assim deslocamos o eixo do nosso debate para uma época e lugar específico, qual seja: a sociedade capitalista atual. As respostas para as questões que iniciaram esse diálogo conduzem à reflexões que objetivam uma realidade singular, que se (re)produz a partir de contradições características deste tipo de sociedade, sendo a mais importante delas a contradição entre capital e trabalho. Tal contradição origina uma sociedade desigual, injusta, antidemocrática e excludente, alicerçada na alienação do trabalho e do trabalhador, na separação entre produtores e consumidores, entre teoria e prática, entre trabalho manual e intelectual, dentre outras formas de exclusão operadas por tais relações.
Desse modo, tanto a tecnologia, como de resto todos os "artefatos sociais e culturais [produzidos pelos homens], [...] carregam consigo relações de poder, intenções e interesses diversos" (Idem, p. 102), e estão inseridas num contexto de lutas - ocasionadas pelos interesses conflitantes na sociedade - que comportam rupturas e continuidades.
Tentando de toda forma a sua perpetuação como classe hegemônica política e economicamente, a burguesia lança mãos dos mais diversos instrumentos - sejam eles repressores ou ideológicos - na tentativa de camuflar as tensões agudas que colocam em lados opostos produtores e exploradores dos bens produzidos coletivamente. Neste aspecto a educação tem servido , preponderantemente, como mecanismo de reprodução dos valores e dos interesses da classe burguesa, escamoteando o conflito e fazendo aparecer a falsa ideia de harmonia social.
Tanto a educação quanto a tecnologia, nesse contexto dualizado, tem servido não como instrumentos de luta revolucionária contra as injustiças e desigualdades, mas de mecanismos para sua manutenção e perpetuação, potencializando ainda mais intensamente, a exploração e a exclusão dos trabalhadores. Essa é a lógica que tem se sobreposto às tentativas mais progressistas de socialização dos bens produzidos pelo conjunto da humanidade, principalmente a partir da crise do welfare state e do revigoramento do neoliberalismo. A fraseologia da sociedade do conhecimento, ensejando novas forma de sociabilidade e de formação para o "novo" trabalhador, incorporadas cada vez mais intensamente pelos Estados a partir da assim chamada III Revolução Industrial (SAVIANI, 2005), tem potencializado a precarização do trabalho e a redução do seu conteúdo, inserindo o trabalhador no mundo do não-trabalho através de uma lógica invertida e pervertida; segundo SCHWARS (apud FRIGOTTO, 1999, p. 78) "o capital começa a perder a faculdade de explorar trabalho".
Isto posto, reduz-se a ambragência da utilização da tecnologia em nossa época, marcada por todas essas tensões, assim como sua incorporação no processo educativo, visto que, segundo a lógica capitalista, cada vez mais, educação e tecnologia, vem servindo de instrumentos para maximização do lucro e exploração do trabalho e consequente alienação do trabalhador.